domingo, 16 de março de 2008

história reticente - Cap.IV

Alguém bateu na porta. Stella levantou a cabeça. O coração pulsava diferente. Não se mexeu. Estava tão absorta em pensamentos inerentes que, por um minuto, não soube o que fazer. Mas claro, preciso abrir a porta. Era dona Izabel, com um sorriso acuado.
- Menina, bom dia. Venha. O café já está na mesa e você precisa alimentar-se.
Stella assentiu, com a cabeça. E saiu do quarto, seguindo o corpo diminuído de dona Izabel. Fitou as suas costas curvadas. As roupas cinzas. Nem pretas, nem brancas. Cinzas. Os cabelos, quase no mesmo tom. Uma mulher sem cor, pensou. E mordeu os lábios. Não quero ser como ela. Prometo: não seguirei o mesmo caminho. Prometo, prometo!
Chegaram à sala onde a família se reunia para as refeições. Tudo era grande e primoroso: os móveis bem feitos eram novos, impecáveis. Ostentavam. A requintada porcelana portuguesa tilintava. A toalha era alva de tão branca. Rendada e delicadamente bordada. Os talheres, de prata. Nas paredes, azulejos portugueses embriagavam em encontros e desencontros de formas coloridas. Azul, amarelo, verde e branco em formas desformes. Dissimulando alguma ausência. Stella maravilhou-se com todas aquelas possibilidades impossíveis. Bem ali, nas paredes, perpetuadas. Percebeu que estavam expostos como relíquias. Certamente não eram herança de família. Tudo era bonito e perfeito em demasia. Não há como ser legítimo. Sentia-se num cenário.
Sentados na grande mesa, Seu Pedro, Antenor e Joaquim prontamente se levantaram quando as duas entraram no aposento. Dona Izabel sentou-se na cadeira próxima à cabeceira, ao lado de seu marido. Pobre mulher, era um defeito do cenário, não tão perfeito agora. E todos sabiam disso. Stella foi acomodada perto da senhora, longe dos rapazes. Mas não olhou para os lados. Precavida.
- Menina Stella, não a vi ontem, mas quero que saiba o quanto é bem-vinda nesta casa – disse Seu Pedro, com a voz aguda em um tom macio, num contraste estranho.
Stella agradeceu, com um fracassado ensaio de sorriso.
- Dormiu bem?
- Sim, senhor, obrigada.
Seu Pedro parecia não ter dado importância à resposta. Sua voz ficou realmente grave, de repente. De verdade.
-Não gostei nada quando soube que passou a noite no quarto de fora da casa. Esta noite dormirá aqui dentro, no quarto de hóspedes.
- Senhor, mas...
- Não tem mas, menina. Comigo não há mas, guarde isso. De agora em diante dormirá na casa. Sei que veio para ajudar Dona Izabel. Mas também veio pra ser minha nora.
Stella corou. Não queria lembrar dessa condição.
- E, gostando ou não, ficará aqui. – afirmou decidido aquele senhor robusto, com olhar fixo de homem de confiança. Do tipo dos que apertam a mão com veemência quando dão sua palavra. Ela baixou a cabeça. Não sabia o que fazer. Sentiu o rosto queimar. E foi invadida por um desejo latente de levantar-se e dizer àquele velho mentecapto que ele não era seu pai. Que não podia falar assim com ela. Mas não fez nada. Apenas aprisionou o ar em seus pulmões, mais uma vez. As palavras morreram asfixiadas. Baixou ainda mais a cabeça.
- Tome, querida, café com leite. E prove esses pães. O bolo também. Está tudo fresquinho, viu? - Dona Izabel entregou-lhe a xícara. Sua mão árida tocou delicadamente a cabeça baixa da menina. Stella tomou o café com um só gole. Queimou sua língua, que ficou ainda mais áspera. Entorpecida, esperou que todos terminassem o desjejum e saíssem. Então, sim, levantou-se. Sentia a sala girar. A sala parecia tremer e as figuras coloridas das paredes agora riam dela. Menina de destino torto. De formas desformes. Sua cabeça doía. Começou a recolher a louça e quase caiu. Segurou-se na mesa. E nada mais quebrou-se graças a Deus. Ainda estava latejando, quando sentiu o delicado calor de uma mão grande, mas leve, segurar-lhe o ombro.
- Tudo bem?
Armou-se. Não espera aquele contato, aquela mão, aquela temperatura nova invadir-lhe.
- Não se preocupe com ele. Pode não parecer, mas seu coração bate, viu? - disse afetuosamente o rapaz.
Stella sentiu então um ofegar desigual. Um ritmo acelerador, descompassado. A voz de Joaquim era intensa e doce. Como deveria ser a vida, meu Deus. Virou-se repentina. Espontânea e desnudada. Olhou para aqueles olhos, como jamais pensara olhar para os olhos de alguém. Não sabe por que fez isso. Mas olhou. E gostou da tempestade que viu. Olhos de mar. Pensou. Baixou a cabeça, em seguida, tomada de um susto. Mas era tarde. Joaquim também viu os seus olhos. Ele não notou o que despertara. Mas sentiu-se mais quente a partir daquele dia.