domingo, 23 de março de 2008

história reticente - Cap.V

O fogo espalhara-se muito rápido. Em minutos, a casa todo estava tomada por chamas altas. Mas o pior era o silêncio. O silêncio do clamor do fogo. Ele ardia em labaredas assassinas. Consumia tudo, sem piedade. Como tem que ser. A fumaça cheirava morte. Odor repugnante de pele esturricada. Carne queimada. Não havia gritos... A não ser o de Stella.
Ela acordou com o seu próprio grito. O coração inquieto, os olhos encharcados. Mãos frias e boca trêmula. Suava. Estava sentada naquela imensa cama daquele imenso quarto em um imenso escuro. Desmedida solidão povoada por medo. Meu Deus, onde estou, onde estou? Estava no desespero. O desespero de um pesadelo que há tanto não a atormentava... O maldito voltou! E mais real do que nunca. Calma, calma. Preciso me acalmar. Não é real, não mais. Abraçou as próprias pernas. Enfiou o rosto no meio delas, como que tentando proteger-se de suas próprias lembranças. Deixou o ar entrar e foi recuperando o fôlego, devagar. O coração foi sossegando. Acendeu a vela e encheu o copo de água. Bebeu rápido, na ânsia de apagar o incêndio que nunca a abandonara, desde aquele amaldiçoado dia de sua curta infância.
Levantou-se da cama e foi até a cômoda onde acomodara suas coisas naquela noite, a primeira dentro da casa dos Almeida. O quarto era grande demais pra ela e seus poucos pertences. Mas deu de ombros. Não tinha o que fazer, a não ser aceitar ficar ali. Pelo menos por enquanto. Abriu sua caixinha de música, que estava sobre o móvel. E de lá tirou o colar e o pingente que sua mãe lhe dera, um pouco antes do dia do incêndio. Continha uma foto sua e outra de Sophia, sua irmã. Fitou o rosto angelical da garotinha. Lembrava sua mãe. Mesmo não recordando as feições da mãe com perfeição, sabia que eram muito parecidas. Sentiu os dedos formigarem e o estômago revirar. Não pode conter as lágrimas. Não era apenas saudade. Stella sentia uma incontida revolta, amarga e dolorida. Sabia que sua vida seria diferente se seus pais ainda estivessem vivos. Mais uma vez, encolheu-se. Enxugou as lágrimas e apertou a foto da irmã. Acalmou-se e tomou mais um gole de água, absorta em suas lembranças.
Da última vez que viu Sophia, a menina tinha cinco anos. Seus cabelinhos eram cor de mel, assim como os olhos grandes e brilhantes. Estava agarrada à uma boneca de pano de olhos de botão amarelos. Antes de partir, Stella beijou-lhe a testa. Com apenas sete anos, a irmã mais velha tornara-se ainda mais velha depois de perder os pais. Cada uma ficou com uma família. Sophia com tia Antônia, que apesar de ser viúva e não ter filhos, alegou não ter condições de arcar com a educação das duas crianças. Stella foi morar com tios paternos que não conhecia. E que agora eram os seus pais.
Da irmã nunca mais soube. Aqueles olhinhos de mel. Essa era a lembrança que Stella guardara da pequena Sophia. Um dia a encontrarei, minha querida. Eu juro.
Um feixe de luz laranja cortou seu olhar absorto. E Stella percebeu que estava amanhecendo. Levantou-se e decidiu continuar. Resolveu descer para tomar o café antes que a família despertasse. Abriu a porta com cuidado e desceu as escadas. Entrou na cozinha, cautelosa. Não havia ninguém ainda. Apressou-se a colocar a madeira no fogão para esquentar a água do café. Então ouviu aquela voz grossa, mas suave, pronunciando o seu nome. Não precisou virar-se para saber que era Joaquim.